Sempre tive em mim, a necessidade do bom senso e do realizável. Mas tudo mudara e mudou-se quando me vi diante da força que é as fantasias masculinas ao deparar com a insana doçura e pequena delicadeza que é o corpo e a alma d’uma mulher. Nas minhas andanças sem rumo, dei de cara com a mulher que era feita de candura com ares de menina e de uma sensualidade quase inocente. Despertou em mim os anseios do toque, dos sentidos e do imaginável. Aquela pele e cheiro que eu imaginava. Aqueles pelos suaves e plumosos dos seus braços, que eu via brilhantes e aloirados pela luz amarelada do ambiente, me enlouqueciam. A conheci em uma noite de sexta-feira, ao abandonar meu apartamento e ser arrastado por amigos para um bar vulgarizado e caindo aos pedaços, que logo dei-me conta de se tratar de um bordel. Nem prestava atenção, nem nas pernas, nem nos corpos nem nas vozes que giravam em torno de mim, enquanto bebericava meu Bourbun com gelo, substituindo meu Whisky favorito, que dizia o dono, acabava-se rápido. Estava alheio e aéreo, pensando em um tal relatório que meu supervisor certamente me ferraria se não fosse feito e entregue rapidamente; estava assim, com preocupações inúteis, nada relaxado, pensando na perda do emprego e me embebedando, até ouvir a canção que me embalou o coração e a mente. Hipnotizado, foi assim que eu me vi. Aprisionado, foi assim que me senti.
E desde aquele dia, a qual relembro toda noite antes de dormir, entregando-me aos peripécias que é a minha mente fantasiosa. Cerimoniosamente, eu venho para cá, ver, vê-la. Ver aquela mulher, alta como uma deusa, dançando insunante naquele palco mal construído e cheio de verniz barato. Dando beleza a uma espelunca como aquela, tornando o ambiente luminoso por abrigar tal estrela. Estrela essa que exalava além do brilho, mas uma beleza caliente, absolutamente inconsequente. Inconsequente e quente tais como meus desejos e desejadas ações, impensadas, mas tão intensamente vívidas e reais, pois a cada passo meu, a cada batida do meu coração… Eu me tornava um pouquinho mais dela.
E eu me lembro, muitíssimo bem, a casa estava cheia naquela noite. Os homens ricos, com seus colarinhos engomados metiam-se naquele bar dos pobres, para além de tomar-lhes o dinheiro suado, tentar tomar-lhe também tomar a beleza daquela mulher. Que já fora menina pobre, e continua sendo, vivendo a dançar e a cantar. Deslumbrando qualquer um com aquela voz rouca e sensual. Voz potente, que realça ainda mais sua beleza lânguida e provocativa. E que mulher era aquela, com tal voz! Os quadris largos, a cintura bem exposta em traços angulosos, as pernas compridas e as coxas roliças. Em que eu me agraciava de deitar a cabeça e desfrutar daqueles travesseiros naturais. Os seios fartos e nos lábios, em que saia a música ritmada, um vestígio de inocência transparecia. Mas seus cabelos ruivos, como uma cortina de fogo, cobriam suas costas de marfim, escondendo-lhe a brancura, a pureza. Deixando apenas reles vislumbres de pele, que me punham a enlouquecer. Arrumei a gravata, sentido-me patético apenas a vista daquela visão do paraíso, há muito desejado. Não tinha muito o que possuir, que lhe oferecer… Nada além de uma cama e meus braços numa noite fria. Nada além do que o calor de um amor abrasador que me aquecia o coração e estremecia-me a alma. Mas não podia deixar de querê-la, de deixar de lado sua ânsia de possuí-la. A cada arranhada em meu coração, eu pensava em como podia querer tanto alguém. E eu não sabia a resposta. Realmente não o sabia… Mas eu o fazia.
Ao vê-la, eu me sentia ferver. Cada parte da minha pele sendo lambida por um fogo desconhecido, invisível que brotava do fundo do meu coração. Fogo esse que(re)nascia ao ver aqueles lábios rosados. Clamando, chamando, cantando, sussurrando. Me pressionando. E a música, que em nada ajudava. Falava de um romance desvairado, marcado por luxúrias e mentiras. Romance… E eu me via hipnotizado. Por aqueles dedos longos que pareciam querer aprisionar o ar e as pernas compridas que pareciam bailar em um giro inocente, todo o mundo. Aquela mulher toda comprida, toda cheia de amores de desejos. Mulher aquela que em sonhos me fazia deitar a cabeça naquelas suas coxas roliças, novamente. E eu podia quase sentir o seu cabelo comprido vermelho pairando sob meu rosto, como uma cortina de fogo. E quando aqueles lábios encostaram no meus, em uma delicadeza quase absurda. Provocando ânsias de um desejo nunca visto, nunca adormecido… A morte. Senti a morte em um único instante que desejei estar vivo por toda a eternidade que seus lábios poderiam me oferecer naqueles reles e miseráveis segundos. E agora? Agora vivo na minha necessidade de tê-la. Abro os olhos a cada hora que me peguei distraído e percebo que me peguei fantasiando desvairadamente, mais uma vez, com ela. Ela ainda canta, a música final. Seus olhos fixam em mim por segundos, a expressão confusa. Mas logo passa. Logo está sorrindo. Logo está cantando. Logo está encantando.<!-- more -->
Acaba-se o espetáculo. Os urros, os berros, o ciúmes que crava-se em meu peito ao ver aqueles homens, rapazes, marinheiros, e marmanjos a gritar-lhe elogiosos indecorosos deixam-me desvairado. A luxúria libidinosa, o afeto escancarado. Senti. Senti quando ela caminhava-se para os fundos, para seu camarim. A necessidade da conversa, da continuação daquele sentimento inacabado me toma e me empurra pelos corredores, escondido sob a aba sob chapéu, caminho. Esgueirei-me até ela, dando de cara com sua esbelta figura em frente a um espelho de lâmpadas, algumas piscavam, outras falhavam, quatro ou cinco acesas de doze. Igual ponteiros de relógio. Via-a por trás da porta, apenas uma brecha minúscula enquanto no fim do corredor ouvia-se o burburinho das outras dançarinas a se aprontar, pra lá e pra cá. Era como eu me sentia, quase semi-flutuando diante da proximidade daquela moça. Uma porta nos separava e a barreira da muralha de seu coração. Ela sorriu pro espelho e eu sorri para seu reflexo. O chapéu na mão. Imprevisivelmente, me pregando um susto, ela olhou para a porta. Dando de cara com seu mais fiel fã, os dedos trêmulos e com os olhos enlouquecidos a olhá-la. Mas ela não se assustou, parecia acostumada com aqueles momentos, com homens a espioná-las.
“Posso ajudá-lo, senhor?” Ela falava arrastado, com a voz rouca, quase a falhar. O‘erre’ se arrastava no final da palavra encantadoramente. Ela me olhava, aguardando, e eu não sabia o que respondê-la. Inutilizado, eu me sentia. Abri a porta devagarzinho e fiquei lá fincado no chão, preso aos seus olhos.
“Cantas muito bem.” Repeti a frase da semana passada, ao dar de cara com ela no bar no estabelecimento, bebendo um gim com tônica. Tinha os olhos avermelhados, marcados por lágrimas de amor. Minha cândida e impura, donzela, sofria. E sofri com ela.
“Agradeço.” Ela sussurrou, voltando a atenção ao espelho. Fui incapaz de me mover, apenas a observei. “Já que pelo jeito não vai embora, porque não entra de uma vez e fecha a porta, meu senhor?”
Sua voz foi quase uma ordem e, mesmo contendo um leve tom de questionamento, eu me vi obrigada a obedecê-la. Claramente satisfeito. Gostava daqueles momentos, em que a realidade fundia-se com minhas fantasias e eu a estreitava em meus braços, beijando-a com um ímpeto que faria o mundo dar uma volta mais rápido, talvez explodir, ou perder-se nas órbitas do universo. Tal qual eu me sentia quando ao terminar o beijo e quando ela roçava sua bochecha de leve na minha.
“Qual é o teu nome?” Ela me tira dos meus devaneios piscantes e luzidios e eu me pego quase corando. Respondo, girando a aba do chapéu agora entre meus dedos, em um sussurro.
“Augusto, mas para ti desgraçado…”
“Porque serias desgraçado?” Sinto o coração palpitar diante de sua pergunta inocente, mas a sua expressão maliciosa enquanto passa um batom vermelho diante do espelho me fez respondê-la.
“Amo a quem desconhece e nunca quererá meu amor.”
“Oh, isso nem é tanto uma desgraça. Pelo menos amas, poderá honrar alguém com teu amor. E eu? Que nunca fui amada e só encontro o amor nas melodias que canto?”
“Você tem jeito de mulher amada. Muito amada.”
“Pensas mesmo isto?”
“Como não? És bela, canta, encanta. Qualquer homem se apaixonaria por ti.”
”Sou grata pelas doces palavras. Visse? Me fiseses sorrir.” Correspondi ao seu sorriso, triste, meio partido. Me senti um tolo, desgraçado. Mas ainda assim feliz por vislumbrar seu sorriso impessoal, mas igualmente caloroso e ao mesmo tempo gélido. Não existe concordância naquele momento, só um sentir devastador. Todo meu. Eu todo dela.
“O que tanto pensa, Augusto?” Ela pergunta curiosa, já deixando a fachada de desconhecida para trás. Conhecidos desconhecidos, era o que éramos.
“Em você”
“Que pensamentos mais infelizes.” Ela pisca os longos cílios, e eu tenho um leve vislumbre de suas pálpebras cor de lavanda.
“A infelicidade tem um quê de beleza.”
“E uma carga toda de feiúra, sejamos sinceros.”
“Se procurar a beleza, você a encontra.”
“Beleza não se encontra… Se deseja.”
“Mas eu encontrei a ti, e a desejei. E não consigo pensar em ti do que algo além da beleza. És bonita.”
O semblante da moça escureceu, me vi preso na tempestade que se formava em seus olhos. Levantou-se depois de alguns instantes, agora nervosa. A escova estava em sua mão quase como que empunhada, os dedos formavam nó em volta da mesma e havia hostilidade em seus olhos. Assustou-me. Assustou-me ver sua expressão ultrajada, nervosa e altiva.
“Ponha-se para fora daqui, senhor!” Me surpreendi com seu tom de voz e com o rumo da conversa. Controlei a gagueira, me deixei levar pela minhas mãos trêmulas e murmurei, de um quê todo arrependido. Implorei pelo perdão, por respostas. Para que aqueles olhos parassem de me acusar.
“Porquê? O que lhe fiz que a insultou tanto?”
“Sinceramente… Não se faça de tolo. Acho melhor que se restires se o que deseja aqui é apenas me levar a cama. Não vendo meus amores, nem meu corpo. Enganou-se em relação a mim. Sou apenas cantora, não vendo o calor do meu corpo.”
“Não compreendo.”
“Acha que nunca aconteceu comigo? Homens elogiam uma beleza que não existe, pois só acredito no que vejo, e em mim nada disso existe, com o intuito de me levantem a sua cama imunda e morta. É só o que me resta. A imundíce do desejo da carne que homens assim possuem.”
“E o que a leva crer, senhorita… Que serei eu igual a estes homens?” Sorri tristemente, querendo que ela lesse tudo que sentia em meus olhos.
“Seu elogio, ele foi…” A interrompi, quase sorrindo, mas procurando permanecer sério.
“Foi oferecido num ato de honestidade, e a honestidade não espera, ela apenas flui, pois ela não possui medos ou receios. Honestidade é pura, como o amor. Meu elogio foi verdadeiro e lhe disse com todo meu respeito e devoção; não pude deixar de dizer o que penso diante de ti.”
“Oh…Se for assim, agradeço.” Ela disse, vermelha, agora de rubor. ”Mas retira-se, por favor.”
“Posso voltar a vê-la, madame?”
“Sabe o horário da minha apresentação, suponho.” Ela sentou-se na cadeira novamente, olhando para mim através do espelho.
“Não quero apenas assistir ao seu espetáculo. Mas vê-la, ver quem realmente és. Igual agora. Meio medrosa e melindrada, mas igualmente encantadora.”
“Senhor… Não me conhece.”
“Ainda. E é exatamente aí que se encontra a raiz de meu problema.”
“Agora sou eu que não lhe compreendo.”
“Quero conhecê-la, madame. Sua alma… Seu corpo eu vejo a brilhar da forma mais bonita possível nos palcos, mesmo não podendo tê-lo. Mas quero ver a alma de artista que seu corpo guarda, aí dentro de si. Vejo quando canta, mas quero ver muito além disto… Quero vê-la como mulher.” Murmurei apaixonadamente, me aproximando. Vi seu peito estremecer quando respirou, como se um passarinho sacudisse as asas pelo seu peito, pousando em seu seio. Podia aquele sentir o tremelicar passarinhado de seu coração.
“Eu…Eu…” Ela quase gagueja, levantando-se, afetada e sorrio diante da ruguinha adorável que se forma no meio de suas sobrancelhas.
“Por favor.” Imploro. Ela sorri, virando o corpo todo para mim. “Qual o seu nome, madame?”
“Francesca, mas para ti… desgraçada.”
“Porque?”
“Meu senhor…” Vejo que ela não quer me responder e vejo por seus olhos algo borbulhar dentro de mim. Como se ela fosse um espelho…
“Me chame de Augusto, por favor, Francesca.”
“O senhor me confunde.”
“Seu mistério me encanta”
“Ah, Augusto… Porque não permaneceste longe?”
Sorri, sorri com a boca, com os olhos, com a mente, com o coração… Eu era todo sorrisos para aquela mulher dentro de mim. Aquela que eu amava a cada minuto mais. Dei um passo, seu perfume me atingindo como um carinho. Seus lábios carmins me chamavam baixinho. Quis gritar-lhe meu amor, mas me contive. Optei pela honestidade, que é um sinônimo confuso de amor.
“Como poderia permanecer longe… Contigo tão perto?”
Francesca sorri para mim, o primeiro sorriso tímido que vi naquele rosto. Sempre tive muitas certezas, mas nenhuma foi tão forte como aquela, ao ver Francesca sorrindo timidamente para mim com seus dentes pequeninos e brancos. Nenhuma certeza foi tão forte quando saber que amaria aquela pequena para sempre. Tendo-a ou não. Eu a amaria por toda a vida.
Autora: Janine Oliveira