A Morte.
Então vamos aquela história. Que eu venho enrolando para contar, deixando a preguiça tomar conta dos meus dedos e deixando meus lábios sem força para sequer se abrirem. Imagine articular palavras. No meu caso, não preciso nem falar, você ouve meu sussurro no fim de… Bem. Isso não importa agora. Essa historinha, como tantas outras que meus olhos velhos já viram, é repetitiva, mas singular.
Histórias meio trágicas, com pitadas de beleza, que eu roubo disfarçadamente. Ah, essa história. Conta sobre a vida de duas pessoas tentando construir um mundo. Um homem e uma mulher. Uma garota e um garoto. Um menino e uma menina. Dois corações tão diferentes, mas como se fossem duas peças de um quebra-cabeça. Unidos ficam completos. Talvez o nome dela seja Bruna, ou Bianca, ou Beatriz, não me vem a memória agora seu nome. Talvez seja somente B. Talvez ela não tenha nome. E aquele garoto, nunca teve um nome específico, mudava tanto, quase tanto como imaginava. Mas ambos tinham nas mãos aquilo que precisavam para fazer aquele mundo estranho em que viviam valer a pena. Seria amor? Seria amizade? Não sei. Eles eram tão diferentes. É meio improvável que pudessem coexistir em um mesmo espaço, ainda mais trabalhar em grupo. Ele era tão… quieto. Como se no silêncio maquinasse planos infalíveis, criasse histórias sussurradas e deixasse o cabelo esconder aquele par de olhos grandes e observadores, como se escondessem sua alma. Olhos esses que enxergavam muito mais do que cores, imagens e palavras, enxergava os pensamentos pelo ar, as coisas subtendidas, os mistérios… Não gostava de sair, gostava de ficar em seu cantinho. Tudo nele era contido, até mesmo a risada. Rouca, grave e ao mesmo tempo tão leve. Como sua voz. Ele era o homem dos sussurros.
E ela? Mulher bonita, de grandes cabelos escorridos, sem cor definida. Gostava da dança e das risadas. Moleca. Apreciava uma boa conversa e não suportava ficar parada. Gostava da exibição e das cores. De tímida não tinha absolutamente nada. Chegava a ser masculina no jeito como corria. Tão leve e solta, como se ser mulher fosse tão fácil quanto respirar. Talvez fosse, para ela. Não se prendia aos costumes femininos, tão valorizados, como a delicadeza. Deixava os cabelos soltos e bagunçados, enquanto corria pelo vento. Não passava maquiagem, não coloria os olhos, deixava que o sorriso mostrasse a beleza que ela mesmo desconhecia que possuía.
E mesmo os dois sendo diferentes, mesmo sendo tão improváveis, mesmo sendo tão errados um para o outro, eles eram perfeitos juntos. Ambos tinham uma imaginação tão grande, tão feroz! Você podia sentir na língua o gosto de suas histórias imaginadas vagando pelo ar. Você podia aspirá-las. Mas como eles realmente se conheceram? Da forma mais clichê possível. Um esbarrão, palavrões por parte da menina, desculpas por parte dele. Depois sorrisos cúmplices e uma risada rouca no meio da rua. Ela como uma boa menina extrovertida e insistente, ganhou a confiança dele pouco a pouco. E ah… Eles passaram tantos dias contando histórias, misturando mundos, vivendo aventuras, naquela pequena calçada sempre depois da escola. Os pés pra cima, cansados da caminhada, a cabeça dela pousada no ombro dele, e leves tremores sacudindo o ombro. Risadas, anseios...
Cresceram juntos, como amigos de infância? Ah, não. Seria tolice pensar que os dois, no auge da infância, pudessem ser amigos. Ela era a popular garota do bairro e ele era o estranho ignorado, que nunca saia de casa. Eles tiverem que se conhecer do modo mais difícil. É claro… Na adolescência. Fase tão inconstante, que chega a ser irônico que eles tenham que ter se conhecido quando ambos não tinham absoluta ideia do que seriam, de quem o eram. Mas em alguns aspectos eram cheios de certezas. Ambos acham o amor desnecessário, porque viam o divórcio, os gritos na casa dos pais, as dores e a indiferença em que uma pessoa largava do outro. Mas apreciam a amizade, que para eles era sinônimo de eterno de confiança. Nada romântico rondava a mente deles enquanto unidos. Mas, então, eles se confundiram e cada um fez o outro rever todos os seus conceitos. Ela foi a primeira amiga dele. Ele foi o primeiro amor dela. Ele aprendeu com ela que garotas podem ser mais frágeis do que as rosas na primavera. Ela aprendeu com ele, que garotos podem sim sorrir e sentir, e que a dureza era fachada, mas que aqueles braços podiam ser muralhas protetoras. E então… O amor!
Apaixonaram-se tão perdidamente que ninguém que os olhava ousava negar que existia naquele casal aquele sentimento. Era tão palpável. Estava nos olhos dele e no sorriso dela. Um amor contado e recontado. Devia virar um livro, mas será que seria entediante? Eles não se separaram desde então, anos afinco permaneceram unidos. E qual a graça de um amor sem desafios?, essas pessoas que leem romances açucarados e clichês devem se perguntar. Ah, mas eles tiveram desafios. E muitos. Seus verdadeiros desafios eram aprender a lidar com suas próprias personalidades. Não, eles não seguiram rumos diferentes, foram juntos para um lugar que pudesse dar certo, ou tentar. Ela queria viver a arte, conhecer mais das pessoas. Ele queria fugir daquele mundo hipócrita e não entendia a fé cega que sua mulher nutria pelo mundo. Eles eram tão diferentes. Ela gostava de música as quarta, sim no meio da semana, sem motivos, nem porquês. Mistérios insolentes que esse amor nos prega… Ele gostava do som do rádio baixo, tocando música clássica e apreciar o silêncio. Ela gostava de usar vestidos até os pés e ele a preferia nua. Mas ambos gostavam tanto, tanto um do outro que aprenderam a mesclar essas duas coisas. Ele gostava de comida caseira, do interior, e ela de comida picante da cidade. Estavam sempre misturando pratos. E tentando provar a cada dia um novo gosto, misturado com os já conhecidos.
Quem diria que ele se apaixonaria logo por uma pessoa tão bagunceira? E quem diria que ela se apaixonaria por um cara tão certinho e acomodado? Quem dia que ele se apaixonaria pela lua, cheia de fases? E ela pelo sol, tão quente que pode queimar se você chegar perto demais? Fogo e gelo. Terra e céu. Sol e Lua. Espécies diferentes, naturezas diferentes. Deviam repelir um ao outro. Mas amor não escolhe hora, nem lugar, nem pessoa. Escolhe é pelo olhar, pela alma. É selvagem, não pode ser domado. Quer coisa mais selvagem que o amor? Não, não existe.
E, confesso, eles viveram uma vida plena. Com muitas discussões e brigas. Inúmeras ameaças de separação. Tiveram filhos… Lindos filhos. Ainda estão aqui na minha lista. Irei visitá-los algum dia, dias bem distantes. Eles viveram o resto de seus dias unidos. Fui encontrá-los em plena noite. É sempre bom ter as pessoas por perto durante seu sono. Você consegue ver a fagulha de vida saindo de seus lábios, tão suavemente, que consegue até aspirá-la. E seus sonhos invadem sua mente. Essa noite em que fui atrás deles, foi uma noite tão tranquila. Pelo menos naquela parte do mundo, naquela casa. Porque o resto do mundo ainda era o caos sangrento, cheio de discórdias, tiros secos, barulhos surdos, dores a mostra. Quando eu os peguei, suas almas tremulando em meus dedos, pude ter certeza que talvez viver seja quase tão bom quanto morrer. Embora a morte, eu, não seja tão inconstante e ardorosa. Estou mais para disciplinada e cheia de horários. Mas ainda assim procuro ser gentil. Porque tirar a vida é quase tão ruim quanto ter o coração arrancado de seus dedos.
O fato é que, com aquelas duas almas gêmeas em meus braços. Entendi porque os humanos são tão apegados ao amor e aos sentimentos. Como não gostar de, até no fim, ter alguém ao seu lado? Não se sentir mais solitário e poder dividir algo além da vida? Ah, aquelas duas almas. Dividiram até a morte. E desejei, num ato atípico de generosidade, olhando para o céu escuro e cheio de estrelas enquanto caminhava... Que todos os humanos pudessem ter seu par. Algo para dividir além da felicidade, mas o desespero também, e a dor… Queria que todos tivessem sido amados, porque ter nos braços almas quentes assim, era quase tão bom quanto sentir a vida correndo pelas veias. Não que eu tenha sentido isso. Convenhamos, a morte sentir a vida, seria irônico demais até para você, não é?
Admiro e abomino essa frieza insolente dos humanos. E essa fé cega que possuem quando vão dormir. Com tanta certeza que irão acordar no dia seguinte, nem sequer imaginam que posso chegar a noite e arrancar de seus lábios, num beijo delicado e definitivo, sua vida. Nem sequer agradecem por poderem sentir algo tão pleno quanto esses sentimentos. São tão apegados a dor que praticamente gritam meu nome durante cada instante que mantém os olhos abertos e até mesmo fechados, como se clamassem para que eu fosse buscá-los. Sempre ignorando tamanha sorte que possuem.
O casal em meus braços sussurravam ‘eu te amo’ até pegarem no sono durante todas as noites de sua longa vida, os lábios abertos em um sorriso de cumplicidade e paz. E até eu, a morte, já tão insensível. Não posso deixar de quase sorrir diante disso. Ah, vocês, seres humanos. Seres tão fascinantes, injustos e sortudos. Aviso-lhes, como uma boa amiga. A morte não espera você estar em plena felicidade para ir te buscar. Ela vem e te leva do jeito mais surpreendente. Talvez até do mais injusto. Então, pergunto-me. Quantas vezes sorriram? Fizeram o bem? Quantas vezes já agradeceram? Quantos eu te amo vocês disseram hoje?
Autora: Janine Oliveira